domingo, 18 de março de 2018
O Chapelinho Vermelho
Uma senhora viúva tinha uma filha de dez anos, que era o seu enlevo. Sempre que se aproximava o dia do aniversário de Laura, a mãe a levava à cidade e escolhia um presente ao gosto da pequena. No seu décimo aniversário, ela desejou possuir uma sombrinha cor vermelha, que a mamãe comprou. Desde então não saía a passeio sem a sombrinha, as meninas vizinhas puseram- lhe a alcunha de “Chapelinho Vermelho”.
Certa vez a mãe de Laura preparou um bolo para a filha levar à casa de sua avó, à beira de uma floresta. Recomendou-lhe que fosse pelo caminho sem dele se desviar, porque no mato havia bichos maus.
Laura tomou o bolo e a princípio observou a recomendação; mas em dado ponto do itinerário, viu uma borboleta azul que era uma beleza e quis segurá-la. A borboleta voou para a mata; Chapelinho Vermelho seguiu-lhe a pista até um recanto onde se lhe deparou um vulto de olhos de fogo, que a fitou demoradamente: era um lobo que logo se aproximou, perguntando o que viera fazer ali.
Respondeu a menina que levava um bolo à sua avó e, vendo uma borboleta, seguiu-a até a paragem onde se achava.
A isso respondeu o interlocutor:
– Você é que está um bolo bom de comer. – E prosseguiu:
– Diga-me uma cousa, menina: sua avó mora só?
– Sim, senhor.
– E você quando lá chegar como faz para ela lhe abrir a porta?
– Eu bato e ela pergunta: “– Quem está aí?” Respondo: “– É Chapelinho Vermelho, sua neta, que lhe vem trazer um bolo”. Vovó diz, então: “– A chave está por baixo da porta, presa ao cordão cuja ponta se vê de fora”. Eu abro a porta e entro, porque minha vovó já custa a se levantar da cama.
Informado o lobo, concluiu a ingênua criança:
– Agora, peço que o senhor me indique a direção que devo seguir para achar com presteza o caminho e me perdoe ter entrado em seus domínios sem lhe pedir licença. Não foi por mal e só por causa da borboleta.
O lobo apontou-lhe um rumo errado e partiu pela floresta como uma flecha, até descobrir a casa da avó de Laura, onde, imitando a voz desta e pondo em prática as informações colhidas, entrou e chegando ao quarto engoliu a pobre da velha, tendo antes fechado a porta de entrada e posto a chave no lugar de costume.
Assim satisfeito, deitou-se na cama da vítima e cobriu-se o melhor que pôde. Decorrido um certo espaço de tempo, chega Chapelinho Vermelho e, depois das perguntas e respostas costumeiras, entra, ignorando tudo que se havia passado com a velha, não tendo, entretanto, fechado, por esquecimento, a porta da rua.
Ao penetrar no quarto, depôs o bolo em um móvel e notando que a suposta avó estava toda enrolada na cama, inquiriu:
– Vovó, você parece que está com muito frio?
Teve em resposta:
– Muito frio, minha neta.
– Vovó, por que é que você está com as orelhas tão compridas?
– É para ouvir bem, minha neta.
– E por que vovó está com a boca tão grande?
– É para devorar-te. – E segurando Laura, engoliu-a, como antes o fizera à velha avó.
Nos arredores da vivenda da pobre velha morava um caçador cujas ovelhas de vez em vez eram dizimadas por esse mesmo lobo e o caçador andava-lhe no encalço. Passando por perto daquela habitação, quase sempre via a avó da menina à janela e com ela conversava; mas, na tarde de que se trata e em que ocorreram tão graves acontecimentos, olhou e não a viu. Intrigou-o a circunstância de se achar aberta a porta da rua. Caminhou para o lugar indicado e entrou na sala; silêncio absoluto!
Pé ante pé foi até o quarto e, desde logo vendo o lobo, imaginou o que teria sucedido.
Tomou da faca e sangrou-o. Examinando o animal de perto, verificou que estava com o ventre entumescido; abriu-o e eis que saltam as duas vítimas que lhe relataram quanto haviam sofrido do feroz animal.
Chapelinho Vermelho e o caçador transportaram a velha, que ficou desde então morando com a filha e a neta. Desde esse dia Laura nunca mais se esqueceu das recomendações e conselhos maternos.
>> Notas do livro:
Desembargador Afonso Cláudio,
“Trovas e Cantares Capixabas”, p. 121. Rio de Janeiro, 1923.
Nota – Toda Europa e continente americano conhecem Chapelinho Vermelho, Le Petit Chaperon Rouge, que Charles Perrault, desde o século XVII, imprimiu. No conto francês não há nome para a petite fille de village. O lobo devora a avó, mete-se no leito e o diálogo com Chapelinho Vermelho é mais longo, incluindo as perguntas sobre o tamanho dos braços, pernas, orelhas e finalmente os dentes. O lobo se jetta sur le petit Chaperon Rouge, et la mangea. Acabou-se a história, bem inexplicavelmente porque as histórias populares não acabam em tragédia e tristeza. A versão alemã dos irmãos Grimm é mais acorde com o espírito do povo. Tem o final da variante brasileira que o Des. Afonso Cláudio registrou no Estado do Espírito Santo. A diferença é que o caçador abre o ventre do lobo, retira as vítimas e as substitui por pedras. O lobo acorda e morre. O caçador ganha a pele do monstro e tudo se passa alegremente. Nas versões brasileiras que conheço, impressas e orais, há sempre o chapéu vermelho, que o Des. Afonso Cláudio trocou pela sombrinha. A intenção é ensinar às mocinhas a evitar conversa com estrangeiros. Especialmente desconhecidos de falas doces e amáveis. Perrault poetou, fechando seu conto:
Mais, hélas qui ne sçait que ces
loups doucereux
De tous le loups sont les plus
dangereux!
>> Crédito à imagem:
"Little Red Riding Hood. Brush Test." criado e divulgado por Ramón García no Tumblr.
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