sexta-feira, 15 de setembro de 2017

Cobra Norato


  No paranã do cachoeiri, entre o Amazonas e o Trombetas, nasceram Honorato e sua irmã Maria Caninana.

  A mãe sentiu-se grávida quando se banhava no rio Claro. Os filhos eram gêmeos e vieram ao mundo na forma de duas serpentes escuras.

  A tapuia batizou-os com os nomes cristãos de Honorato e Maria. E sacudiu-os nas águas do paranã porque não podiam viver em terra.

  Criaram-se livremente, revirando ao sol os dorsos negros, mergulhando nas marolas e bufando de alegria selvagem. O povo chamava-os: Cobra Norato e Maria Caninana.

  Cobra Norato era forte e bom. Nunca fez mal a ninguém. Vez por outra vinha visitar a tapuia velha, no tejupar do Cachoeiri. Nadava para a margem esperando a noite.

  Quando apareciam as estrelas e a aracuã deixava de canta, Honorato saía d’água, arrastando o corpo enorme pela areia que rangia.

  Vinha coleando, subindo, até a barraca. Sacudia-se todo, brilhando as escamas na luz das estrelas. E deixa o couro monstruoso da cobra, erguendo-se um rapaz bonito, todo de branco. La cear e dormir no tejupar materno. O corpo da cobra ficava estirado junto do paranã. Pela madrugada, antes do último cantar do galo, Honorato descia a barranca, metia-se dentro da cobra que estava imóvel. Sacudia-se. E a cobra, viva e feia, remergulhava nas águas do paranã.

  Voltava a ser a Cobra Norato.

  Salvou muita gente de morrer afogada. Direitou montarias e venceu peixes grandes e ferozes. Por causa dele piraíba do rio Trombetas abandonou a região, depois de uma luta de três dias e três noites.


  Maria Caninana era violenta e má. Alagava as embarcações, matava os náufragos, atacava os mariscadores que pescavam, feria os peixes pequenos. Nunca procurou a velha tapuia que morava no tejupar do Cachoeiri.

  No porto da Cidade de Óbidos, no Pará, vive uma serpente encantadora, dormindo escondida na terra, com a cabeça debaixo do altar da Senhora Sant’ana, na Igreja que é da mãe de Nossa Senhora.

  A cauda esta no fundo do rio. Se a serpente acordar, a Igreja cairá. Maria Caninana mordeu a serpente para ver a Igreja cair. A serpente não acordou mas se mexeu. A terra rachou, desde o mercado até a Matriz de Óbidos.

  Cobra Norato matou Maria Caninana porque ela era violenta e má. E ficou sozinho, nadando nos igarapés, nos rios, no silêncio dos paranãs.

  Quando havia putirão de farinha, dabucuri de frutas nas povoações plantadas à beira-rio, Cobra Norato desencantava, na hora em que os aracuãs deixam de cantar, e subia todo de branco, para dançar e ver as moças, conversar com os rapazes, agradar os velhos.

  Todo mundo ficava contente. Depois, ouviam o rumor da cobra mergulhando. Era madrugada e Cobra Norato ia cumprir seu destino.

  Uma vez por ano Cobra Norato convidava um amigo para desencantá-lo. Amigo ou amiga. Podia ir na beira do paranã, encontrar a cobra dormindo como morta, boca aberta, dentes finos, riscando de prata o escuro da noite: sacudir na boca aberta três pingos de leite de mulher e dar uma cutilada com ferro virgem na cabeça da cobra, estirada no areião.

  Cobra fecharia a boca e a ferida daria três gotas de sangue. Honorato ficava só homem, para o resto da vida.

  O corpo da cobra seria queimado. Não fazia mal. Bastava que alguém tivesse coragem.

  Muita gente, com pena de Honorato, foi, com aço virgem e frasquinho de leite de mulher, ver a cobra dormindo no barranco. Era tão grande e tão feia que, dormindo como morta, assombrava.

  A velha tapuia do Cachoeiri, ela mesma, foi e teve medo. Cobra Honorato continuou nadando e assobiando nas águas grandes, do Amazonas ao Trombetas, indo e vindo, como um desesperado sem remissão.

  Num putirão famoso, Cobra Norato nadou pelo rio Tocantins, subindo para Cametá. Deixou o corpo na beira do rio e foi dançar, beber, conversar.

  Fez amizade com um soldado e pediu que o desencantasse. O soldado foi, com o vidrinho de leite e um machado que não cortara pau, aço virgem. Viu a cobra estirada, dormindo como morta. Boca aberta. Sacudiu três pingos de leite entre os dentes. Desceu o machado, com vontade, no cocuruto da cabeça. O sangue marejou. A cobra sacudiu-se e parou.

  Honorato deu um suspiro de descanso. Veio ajudar a queimar a cobra onde vivera tantos anos. As cinzas voaram. Honorato ficou homem. E morreu, anos depois, na Cidade do Cametá, no Pará.

  Não há nesse rio e terras do Pará quem ignore a vida da Cobra Norato. São aventuras e batalhas.

  Canoeiros, batendo a jacumã, apontam os cantos, indicando as paragens inesquecidas:

  “Ali passava, todo o dia, a Cobra Norato...”

  >> Notas do livro (Vocabulário e Informação):

  Luís da Câmara Cascudo. A versão é resumida de narrativas regionais do Pará, onde a lenda é típica e espalhadíssima. Uma versão idêntica poderá ser lida em "O matuto cearense e o caboclo do Pará" (contribuição ao folclore nacional), pp. 10-21, Belém do Pará, 1930, de José Carvalho (1872-1933).

  Putirão: Puxirum, mutirum, mutirão, muxirão, adjunto, ajuda, ajuri no Amazonas-Pará, trabalho comum, gratuito, em proveito de um individuo que oferece a alimentação e bebidas, e depois de um baile; Batalhão em Sergipe Bahia.

  Dabucuri: tauúcuri, taua-oú curi, banquete, festa de convite, dada de tribo a tribo em sinal de amizade e boa vizinhança, segundo Stradelli.

  >> Notas do blog:

  Separei aqui algumas palavras do vocabulário disponibilizado pelo livro referentes a outro conto.

Tejubar: Palhoça (BR).
Montaria: Embarcação de tamanho variado e típica na Amazônia. O remador e piloto ao mesmo temposenta-se no primeiro banco da proa e aí com o remo em feitio a lembrar uma pá movimenta e dirige a embarcação em lugares rasos por ter a embarcação o fundo achatado e atracação fácil pela proa e até pela popa. (Vocabulário Amazonense), de Alfredo da Mata.
Igarapé: Braço de rio que penetra pelo interior das terras, podendo apresentar condições de navegabilidade, ou então orinar-se de veios de nascentes em determinados pontos. (Vocabulário Amazonense, Alfredo da Mata, Manaus, 1939).

>> Créditos às imagens:

"Orial" encontrado em The Art Of Animation Pinterest divulgado por The Art Of Animation Tumblr e criado por ArtOfEdge.
"Equatorial Spitting Cobra" encontrado em DeviantArt e criado por Culpeo-Fox.

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Quem isto ouvir e contar em pedra se há de tornar...