Introdução do conto; contém revelações de inrredo (spoilers):
Poucas histórias para crianças celebram o sofrimento com o tipo de paixão deste conto sobre uma vendedora de fósforos. A criança frágil e desamparada que morre de frio na véspera do anonovo tornou-se uma espécie de ícone cultural, a vítima de um pai brutal (muito mais cruel que os ogros e bichos-papões dos contos de fadas) e de uma sociedade desalmada. Até a natureza lhe volta as costas, não lhe oferecendo abrigo nem sustento. A mágica dos contos de fadas desaparece, e a salvação chega apenas na forma da intervenção divina.
O narrador da história da vendedora de fósforos nos transporta
para o mundo mental da heroína, permitindo-nos sentir sua dor à
medida que a temperatura cai e o vento uiva. Também partilhamos
suas visões, primeiro de calor, depois de alimento, depois de beleza
e, finalmente, de afeição e compaixão humana. Se a imagem final da
história nos apresenta um cadáver congelado, a morte da pequena
vendedora de fósforos é ainda assim uma “bela morte”, envolta em
espiritualidade radiante e significado transcendente. Quer leiamos
seus sofrimentos como “torturas disfarçadas em pieguices” (como
o fez P.L. Travers, a autora de Mary Poppins) ou consideremos sua
infelicidade como a precondição para a passagem a uma esfera mais
elevada, a história impregna nossa imaginação e continua sendo
uma das mais memoráveis narrativas da infância.
Muitos concordarão que o único requisito para um bom livro
infantil é o triunfo do protagonista. A pequena vendedora de fósforos,
com sua cena de morte, foi adaptada e reescrita muitas vezes ao longo do último século,
de maneira especialmente notável numa edição de 1944, que em seu texto de capa proclamava: “As crianças lerão extasiadas esta nova versão do famoso conto de Hans Christian
Andersen. Pois nela a pequena vendedora de fósforos, naquela véspera de Natal de tanto
tempo atrás, não é vitimada pelo frio cortante, mas encontra calor, alegria e um lar encantador onde vive feliz para sempre.” Andersen, que escreveu esta história numa década de
inquietação social e convulsão política, ficaria sem dúvida desolado pela infl exão positiva
dada a uma história que pode ser lida como uma crítica poderosa a desigualdades sociais.
***
O conto:
Fazia um frio terrível. A neve caía e dali a pouco ficaria escuro. Era o último dia do ano: véspera de ano-novo. Nas ruas frias, escuras, você poderia ver uma pobre menininha
sem nada para lhe cobrir a cabeça, e descalça.(2) Bem, é verdade que estava usando chinelos quando saiu de casa. Mas
de que adiantavam? Eram chinelos enormes, que pertenciam
à sua mãe, o que lhe dá uma ideia de como eram grandes.
A menina os perdera ao atravessar correndo uma estrada no
instante em que duas carruagens avançavam ruidosamente e
numa velocidade apavorante. Não conseguiu achar um pé
dos chinelos em lugar nenhum, e um menino fugiu com o
outro, dizendo que um dia, quando tivesse filhos, poderia
usá-lo como berço.
A menina caminhava com seus pezinhos descalços,
que estavam rachados e ficando azuis de frio. Levava um
molho de fósforos na mão e mais no avental. Não vendera
nada o dia inteiro e ninguém lhe dera um níquel sequer.
Pobre criaturinha, parecia a imagem da miséria(3) a se arrastar,
faminta e tiritando de frio. Flocos de neve se aninhavam
em seu cabelo claro, comprido, que ondulava suavemente em
volta do pescoço. Mas você pode ter certeza de que ela não
estava pensando em sua aparência. Em cada janela, luzes
reluziam e um delicioso cheiro de ganso assado se espalhava
pelas ruas. Veja bem, era véspera de ano-novo. Era nisso
que ela pensava.
Num canto entre duas casas, uma das quais se projetava
sobre a rua, ela se agachou e se encolheu no frio, as pernas
dobradas sob si. Mas isso só a fez sentir mais e mais frio.
Não tinha coragem de voltar para casa,(4) pois não vendera
fósforo nenhum e não tinha um níquel para levar. Seu pai
com certeza iria surrá-la, e depois era quase tão frio em casa
quanto aqui. Só tinham o telhado para protegê-los, e o vento
sibilava através dele, embora as fendas maiores tivessem sido
vedadas com palha e trapos. O frio era tanto que as mãos
da menina estavam quase dormentes. Ah! Talvez acender
um fósforo ajudasse um pouco. Se pelo menos se atrevesse
a tirar um do pacote e riscá-lo na parede, só para aquecer os
dedos. Puxou um – rrrec! –, como ele espirrava enquanto
queimava! Surgiu uma luz clara e tépida, como uma vela,
quando pôs a mão sobre ele. Sim, que luz estranha era
aquela! A menina imaginou que estava sentada junto de uma
grande estufa de ferro, com lustrosos puxadores de cobre e
pés de latão. Que calor o fogo desprendia! No instante em
que ia esticando os dedos dos pés para aquecê-los também
– a chama apagou e a estufa desapareceu. Lá ficou ela, com
o toco de um fósforo queimado na mão.
Riscou outro fósforo contra a parede. Ele explodiu em
chamas, e a parede que iluminava ficou transparente como
um véu. Ela pôde ver direitinho dentro da sala, onde, sobre
uma mesa coberta com uma toalha branca como a neve,
estava posta uma porcelana delicada. Bem ali, podia-se ver
um ganso assado fumegante, recheado com maçãs e ameixas. E, o que foi ainda
mais espantoso, o ganso saltou do prato e saiu gingando pelo piso, com uma
faca de trinchar e um garfo ainda espetados nas costas. Rumou diretamente
para a pobre menininha. Mas naquele instante o fósforo apagou e só sobrou a
parede úmida e fria diante dela.
Acendeu um outro fósforo. Agora estava sentada sob uma árvore de Natal.
Era ainda maior e mais bonita do que uma que vira no Natal passado através da
porta de vidro da casa de um comerciante rico. Milhares de velas ardiam nos
ramos verdes, e figuras coloridas, como as que já vira em vitrines, contemplavam
aquilo tudo. A menina esticou ambas as mãos no ar... e o fósforo se apagou.
As velas de Natal foram subindo, subindo, até que ela viu que eram estrelas
cintilantes. Uma delas se transformou numa estrela cadente, deixando atrás de
si uma risca de fogo coruscante.
“Alguém está morrendo”, pensou a menina, pois sua avó, a única pessoa
que fora boa para ela e que agora estava morta, lhe contara que, quando a gente
vê uma estrela cadente, é um sinal de que uma alma está subindo para Deus.
Riscou mais um fósforo contra a parede. Fez-se um
clarão à sua volta, e bem ali, no centro dele, estava sua velha
avó, parecendo radiante, e suave e amorosa. “Oh, vovó!” a
menina exclamou. “Leve-me com você! Sei que vai desaparecer quando o fósforo apagar – como aconteceu com a
estufa quentinha, com o delicioso ganso assado e com a alta
e bela árvore de Natal.” Mais que depressa ela acendeu todo
o molho de fósforos, tal era o desejo de conservar sua avó
exatamente ali onde estava. Os fósforos chamejaram com
tanto vigor que repente ficou mais claro que a clara luz do
dia. Nunca sua avó parecera tão alta e bonita. Ela tomou a
menina nos braços e juntas as duas voaram em esplendor e
alegria, cada vez mais alto, acima da terra, para onde não há
frio, nem fome, nem dor. Estavam com Deus.
Na madrugada seguinte, a menina jazia enroscada
entre as duas casas,(5) com as faces rosadas e um sorriso nos
lábios. Morrera congelada na última noite do ano velho. O
ano-novo despontou sobre o corpo congelado da menina,
que ainda segurava fósforos na mão, um molho já usado.
“Ela estava tentando se aquecer”, disseram as pessoas.
Ninguém podia imaginar que coisas lindas ela vira e em
que glória partira com sua velha avó para a felicidade do
ano-novo.
***
Notas do livro; com revelações de irredo (spoilers):
2. descalça. Como filho de um sapateiro, Andersen
fazia especial questão de focalizar os calçados de
seus personagens. O pés descalços da pequena
vendedora de fósforos a tornam uma figura particularmente abjeta, embora meninas que dão
demasiado valor a seus sapatos também se vejam
em apuros (ver, de Andersen, “A menina que
pisou no pão”, cuja protagonista se recusa a sujar
seus sapatos, e “Os sapatos vermelhos”, cuja protagonista se orgulha de usar calçados exuberantes).
3. a imagem da miséria. Andersen nos oferece
muitas vezes quadros de sofrimento. A afetuosa
apresentação da condição desgraçada da menina
sugere uma tendência a estetizar o sofrimento, a
criar beleza através de descrições elaboradas da
miséria e da afl ição.
4. Não tinha coragem de voltar para casa. Andersen
contou que a história foi inspirada em parte pela
experiência de sua própria mãe, mandada para a
rua para mendigar, com a ordem de não voltar
até que tivesse conseguido algum dinheiro. As
simpatias de Andersen estavam sempre com os
oprimidos, e a pequena vendedora de fósforos é
um exemplo de pura vítima.
5. menina jazia enroscada entre as duas casas. Embora
o corpo congelado da menina represente uma
advertência grotesca para os passantes, suas “faces
rosadas” e seu “sorriso” sugerem que ela teve uma
bela morte e que ela transcendeu as coisas terrenas.
***
Créditos de imagem:
+ http://www.shortkidstories.com/story/little-match-girl/
+ https://oshred.deviantart.com/art/The-Little-Match-Girl-581204340
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