segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

A pequena vendedora de fósforos

      Introdução do conto; contém revelações de inrredo (spoilers):



      Poucas histórias para crianças celebram o sofrimento com o tipo de paixão deste conto sobre uma vendedora de fósforos. A criança frágil e desamparada que morre de frio na véspera do anonovo tornou-se uma espécie de ícone cultural, a vítima de um pai brutal (muito mais cruel que os ogros e bichos-papões dos contos de fadas) e de uma sociedade desalmada. Até a natureza lhe volta as costas, não lhe oferecendo abrigo nem sustento. A mágica dos contos de fadas desaparece, e a salvação chega apenas na forma da intervenção divina.


      O narrador da história da vendedora de fósforos nos transporta para o mundo mental da heroína, permitindo-nos sentir sua dor à medida que a temperatura cai e o vento uiva. Também partilhamos suas visões, primeiro de calor, depois de alimento, depois de beleza e, finalmente, de afeição e compaixão humana. Se a imagem final da história nos apresenta um cadáver congelado, a morte da pequena vendedora de fósforos é ainda assim uma “bela morte”, envolta em espiritualidade radiante e significado transcendente. Quer leiamos seus sofrimentos como “torturas disfarçadas em pieguices” (como o fez P.L. Travers, a autora de Mary Poppins) ou consideremos sua infelicidade como a precondição para a passagem a uma esfera mais elevada, a história impregna nossa imaginação e continua sendo uma das mais memoráveis narrativas da infância.



      Muitos concordarão que o único requisito para um bom livro infantil é o triunfo do protagonista. A pequena vendedora de fósforos, com sua cena de morte, foi adaptada e reescrita muitas vezes ao longo do último século, de maneira especialmente notável numa edição de 1944, que em seu texto de capa proclamava: “As crianças lerão extasiadas esta nova versão do famoso conto de Hans Christian Andersen. Pois nela a pequena vendedora de fósforos, naquela véspera de Natal de tanto tempo atrás, não é vitimada pelo frio cortante, mas encontra calor, alegria e um lar encantador onde vive feliz para sempre.” Andersen, que escreveu esta história numa década de inquietação social e convulsão política, ficaria sem dúvida desolado pela infl exão positiva dada a uma história que pode ser lida como uma crítica poderosa a desigualdades sociais.


***


      O conto:



      Fazia um frio terrível. A neve caía e dali a pouco ficaria escuro. Era o último dia do ano: véspera de ano-novo. Nas ruas frias, escuras, você poderia ver uma pobre menininha sem nada para lhe cobrir a cabeça, e descalça.(2) Bem, é verdade que estava usando chinelos quando saiu de casa. Mas de que adiantavam? Eram chinelos enormes, que pertenciam à sua mãe, o que lhe dá uma ideia de como eram grandes. A menina os perdera ao atravessar correndo uma estrada no instante em que duas carruagens avançavam ruidosamente e numa velocidade apavorante. Não conseguiu achar um pé dos chinelos em lugar nenhum, e um menino fugiu com o outro, dizendo que um dia, quando tivesse filhos, poderia usá-lo como berço.


      A menina caminhava com seus pezinhos descalços, que estavam rachados e ficando azuis de frio. Levava um molho de fósforos na mão e mais no avental. Não vendera nada o dia inteiro e ninguém lhe dera um níquel sequer. Pobre criaturinha, parecia a imagem da miséria(3) a se arrastar, faminta e tiritando de frio. Flocos de neve se aninhavam em seu cabelo claro, comprido, que ondulava suavemente em volta do pescoço. Mas você pode ter certeza de que ela não estava pensando em sua aparência. Em cada janela, luzes reluziam e um delicioso cheiro de ganso assado se espalhava pelas ruas. Veja bem, era véspera de ano-novo. Era nisso que ela pensava.


      Num canto entre duas casas, uma das quais se projetava sobre a rua, ela se agachou e se encolheu no frio, as pernas dobradas sob si. Mas isso só a fez sentir mais e mais frio. Não tinha coragem de voltar para casa,(4) pois não vendera fósforo nenhum e não tinha um níquel para levar. Seu pai com certeza iria surrá-la, e depois era quase tão frio em casa quanto aqui. Só tinham o telhado para protegê-los, e o vento sibilava através dele, embora as fendas maiores tivessem sido vedadas com palha e trapos. O frio era tanto que as mãos da menina estavam quase dormentes. Ah! Talvez acender um fósforo ajudasse um pouco. Se pelo menos se atrevesse a tirar um do pacote e riscá-lo na parede, só para aquecer os dedos. Puxou um – rrrec! –, como ele espirrava enquanto queimava! Surgiu uma luz clara e tépida, como uma vela, quando pôs a mão sobre ele. Sim, que luz estranha era aquela! A menina imaginou que estava sentada junto de uma grande estufa de ferro, com lustrosos puxadores de cobre e pés de latão. Que calor o fogo desprendia! No instante em que ia esticando os dedos dos pés para aquecê-los também – a chama apagou e a estufa desapareceu. Lá ficou ela, com o toco de um fósforo queimado na mão.


      Riscou outro fósforo contra a parede. Ele explodiu em chamas, e a parede que iluminava ficou transparente como um véu. Ela pôde ver direitinho dentro da sala, onde, sobre uma mesa coberta com uma toalha branca como a neve, estava posta uma porcelana delicada. Bem ali, podia-se ver um ganso assado fumegante, recheado com maçãs e ameixas. E, o que foi ainda mais espantoso, o ganso saltou do prato e saiu gingando pelo piso, com uma faca de trinchar e um garfo ainda espetados nas costas. Rumou diretamente para a pobre menininha. Mas naquele instante o fósforo apagou e só sobrou a parede úmida e fria diante dela.


      Acendeu um outro fósforo. Agora estava sentada sob uma árvore de Natal. Era ainda maior e mais bonita do que uma que vira no Natal passado através da porta de vidro da casa de um comerciante rico. Milhares de velas ardiam nos ramos verdes, e figuras coloridas, como as que já vira em vitrines, contemplavam aquilo tudo. A menina esticou ambas as mãos no ar... e o fósforo se apagou. As velas de Natal foram subindo, subindo, até que ela viu que eram estrelas cintilantes. Uma delas se transformou numa estrela cadente, deixando atrás de si uma risca de fogo coruscante.


      “Alguém está morrendo”, pensou a menina, pois sua avó, a única pessoa que fora boa para ela e que agora estava morta, lhe contara que, quando a gente vê uma estrela cadente, é um sinal de que uma alma está subindo para Deus.


      Riscou mais um fósforo contra a parede. Fez-se um clarão à sua volta, e bem ali, no centro dele, estava sua velha avó, parecendo radiante, e suave e amorosa. “Oh, vovó!” a menina exclamou. “Leve-me com você! Sei que vai desaparecer quando o fósforo apagar – como aconteceu com a estufa quentinha, com o delicioso ganso assado e com a alta e bela árvore de Natal.” Mais que depressa ela acendeu todo o molho de fósforos, tal era o desejo de conservar sua avó exatamente ali onde estava. Os fósforos chamejaram com tanto vigor que repente ficou mais claro que a clara luz do dia. Nunca sua avó parecera tão alta e bonita. Ela tomou a menina nos braços e juntas as duas voaram em esplendor e alegria, cada vez mais alto, acima da terra, para onde não há frio, nem fome, nem dor. Estavam com Deus.


      Na madrugada seguinte, a menina jazia enroscada entre as duas casas,(5) com as faces rosadas e um sorriso nos lábios. Morrera congelada na última noite do ano velho. O ano-novo despontou sobre o corpo congelado da menina, que ainda segurava fósforos na mão, um molho já usado. “Ela estava tentando se aquecer”, disseram as pessoas. Ninguém podia imaginar que coisas lindas ela vira e em que glória partira com sua velha avó para a felicidade do ano-novo.


***

      Notas do livro; com revelações de irredo (spoilers):



      2. descalça. Como filho de um sapateiro, Andersen fazia especial questão de focalizar os calçados de seus personagens. O pés descalços da pequena vendedora de fósforos a tornam uma figura particularmente abjeta, embora meninas que dão demasiado valor a seus sapatos também se vejam em apuros (ver, de Andersen, “A menina que pisou no pão”, cuja protagonista se recusa a sujar seus sapatos, e “Os sapatos vermelhos”, cuja protagonista se orgulha de usar calçados exuberantes).


      3. a imagem da miséria. Andersen nos oferece muitas vezes quadros de sofrimento. A afetuosa apresentação da condição desgraçada da menina sugere uma tendência a estetizar o sofrimento, a criar beleza através de descrições elaboradas da miséria e da afl ição.


      4. Não tinha coragem de voltar para casa. Andersen contou que a história foi inspirada em parte pela experiência de sua própria mãe, mandada para a rua para mendigar, com a ordem de não voltar até que tivesse conseguido algum dinheiro. As simpatias de Andersen estavam sempre com os oprimidos, e a pequena vendedora de fósforos é um exemplo de pura vítima.


      5. menina jazia enroscada entre as duas casas. Embora o corpo congelado da menina represente uma advertência grotesca para os passantes, suas “faces rosadas” e seu “sorriso” sugerem que ela teve uma bela morte e que ela transcendeu as coisas terrenas.

***

Créditos de imagem:

+ http://www.shortkidstories.com/story/little-match-girl/
+ https://oshred.deviantart.com/art/The-Little-Match-Girl-581204340

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Quem isto ouvir e contar em pedra se há de tornar...