sábado, 11 de novembro de 2017

A Mãe

--Oh! Nosso Senhor não mo há-de levar! não é verdade?--
E o velho, que era a Morte, meneou a cabeça duma maneira estranha, em ar de dúvida. A mãe deixou pender a fronte para o chão, e as lágrimas corriam-lhe em fio pela cara. Sentiu-se estonteada com um grande peso de cabeça; estava sem dormir havia três dias e três noites. Passou ligeiramente pelo sono, durante um minuto, e despertou sobressaltada a tremer de frio.
--Que é isto! exclamou, lançando à volta de si o olhar alucinado. O berço estava vazio. O velho tinha-se ido embora, roubando-lhe a criança.
* * * * *
A pobre mãe saiu precipitadamente, gritando pelo filho. Encontrou uma mulher sentada no meio da neve, vestida de luto. «A Morte entrou-te em casa, disse-lhe ela. Via sair a correr levando teu filho. Anda mais depressa que o vento, e o que ela furta nunca o torna a entregar.»
--Por onde foi ela? gritou a mãe. Diz-mo pelo amor de Deus!»
--Sei o caminho por onde ela foi, respondeu a mulher vestida de preto. Mas só to ensino, se me cantares primeiro todas as canções que cantavas ao teu filho. São lindas, e tens uma voz harmoniosa. Eu sou a Noite e muitas vezes tas ouvi cantar, debulhada em lágrimas.
--Cantar-tas-ei todas, todas, mas logo, disse a mãe. Agora não me demores, porque quero encontrar o meu filho.--
A Noite ficou silenciosa. A mãe então, desfeita em lágrimas, começou a cantar. Cantou muitas canções, mas as lágrimas foram mais do que as palavras.
No fim disse-lhe a Noite: «Toma à direita, pela floresta escura de pinheiros. Foi por aí que a Morte fugiu com o teu filho.»
A mãe correu para a floresta; mas no meio dividia-se o caminho, e não sabia que direcção havia de seguir. Diante dela havia um matagal, cheio de silvas, sem folhas nem flores, de cujos ramos pendia a neve cristalizada.
* * * * *
--Não viste a Morte que levava o meu filho?» perguntou-lhe a mãe.
--Vi, respondeu o matagal, mas não te ensino o caminho, senão com a condição de me aqueceres no teu seio, porque estou gelado.»
E a mãe estreitou o matagal contra o coração; os espinhos dilaceraram-lhe o peito, donde corria sangue. Mas o matagal vestiu-se de folhas frescas e verdejantes, e cobriu-se de flores numa noite de Inverno frigidíssima, tal é o calor febricitante do seio d'uma mãe angustiosa.
E o matagal ensinou-lhe o caminho que devia seguir. Foi andando, andando, até que chegou à margem dum grande lago, onde não havia nem barcos, nem navios. Não estava suficientemente gelado para se andar por ele, e era demasiadamente profundo para o passar a vau. Contudo, querendo encontrar o seu filho, era necessário atravessá-lo. No delírio do seu amor, atirou-se de bruços a ver se poderia beber toda a água do lago. Era impossível, mas lembrava-se que Deus, por compaixão, faria talvez um milagre.
--Não! não és capaz de me esgotar, disse o lago. Sossega, e entendamo-nos amigavelmente. Gosto de ver pérolas no fundo das minhas águas, e os teus olhos são dum brilho mais suave do que as pérolas mais ricas que eu tenho possuído. Se queres, arranca-os das órbitas à força de chorar, e levar-te-ei à estufa grandiosa, que está do outro lado: essa estufa é a habitação da Morte; e as flores e as árvores que estão lá dentro, é ela quem as cultiva; cada flor e cada árvore é a vida duma criatura humana.»
--Oh! o que não darei eu, para reaver o meu filho!» disse a mãe. E apesar de ter já chorado tantas lágrimas, chorou com mais

sábado, 4 de novembro de 2017

Barba Ruiva





Barba Ruiva

  Aqui está a lagoa de Paranaguá, limpa como um espelho e bonita como noiva enfeitada.
  Espraia-se em quinze quilômetros por cinco de largura, mas não era, tempo antigo, assim grande, poderosa como um braço de mar. Cresceu por encanto, cobrindo mato e caminho, por causa do pecado dos homens.
  Nas salinas, ponta leste do povoado de Paranaguá, vivia uma viúva com três filhas. O rio Fundo caía numa lagoa pequena no meio da várzea.
  Um dia, não se sabe como, a mais moça das filhas da viúva adoeceu e ninguém atinava com a moléstia. Ficou triste e pensativa.
  Estava esperando menino e o namorado morrera sem ter ocasião de levar a moça ao altar.
  Chegando o tempo, descansou a moça nos matos e, querendo esconder a vergonha, deitou o filhinho num tacho de cobre e sacudiu-o dentro da lagoa.
  O tacho desceu e subiu logo, trazido por uma Mãe-d’Água, tremendo de raiva na sua beleza feiticeira. Amaldiçoou a moça que chorava, e mergulhou.
  As águas foram crescendo, subindo e correndo, numa enchente sem fim, dia e noite, alagando, encharcando, atolando, aumentando sem cessar, cumprindo uma ordem misteriosa. Tomou toda a várzea, passando por cima das carnaubeiras e buritis, dando onda como maré de enchente na lua.
  Ficou a lagoa encantada, cheia de luzes e de vozes. Ninguém podia morar na beira porque, a noite inteira, subia do fundo d’água um choro de criança, como se chamasse a mãe para amamentar.
  Ano vai e ano vem, o choro parou e vez por outra, aparecia um homem moço, airoso, muito claro, menino de manhã, com barbas ruivas ao meio-dia e barbado de branco ao anoitecer.
  Muita gente o viu e tem visto. Foge dos homens e procura as mulheres que vão bater roupa. Agarra-as só para abraçar e beijar. Depois, corre e pula na lagoa, desaparecendo.
  Nenhuma mulher bate roupa e toma banho sozinha, com medo do Barba Ruiva. homem de respeito, doutor formado, tem encontrado o Filho-da-Mãe-d’Água, e perde o uso da razão, horas e horas.
  Mas, o Barba Ruiva não ofende a ninguém. Corre sua sina nas águas da lagoa de Paranaguá, perseguindo mulheres e fugindo de homens.
  Um dia desencantará. Se uma mulher atirar na cabeça dele água benta e um rosário indulgenciado. Barba Ruiva é pagão, e deixa de ser encantado sendo cristão.
  Mas não nasceu ainda essa mulher valente para desencantar o Barba Ruiva.
  Por isso ele cumpre sua sina nas águas claras da lagoa de Paranaguá.
4 – Barba Ruiva.
  LUÍS CÂMARA CASCUDO.



Quem isto ouvir e contar em pedra se há de tornar...