Sapucaia-roca é uma pequena povoação à margem do rio Madeira.
Pouco abaixo do lugar em que se acha assentada, referem os índios que existiu outrora uma povoação, muito maior do que esta, e que um dia desapareceu da superfície da terra, sepultando-se nas profundidades do rio.
É que os muras, que então a habitavam, levavam a vida desordenada e má, e nas festas, que em honra de Tupana celebravam, entregaram-se a danças tão lascivas e cantavam cantigas tão impuras, que faziam chorar de dor aos angaturamas, que eram os espíritos protetores, que por eles velavam.
Por vezes os velhos e inspirados pajés, sabedores dos segredos de Tupana, haviam-nos advertido de que tremendo castigo os ameaçava, se não rompessem com a prática de tão criminosas abominações.
Mas cegos e surdos, os muras não os viam, nem os ouviam. E pois um dia, em meio das festas e das danças e quando mais quente fervia a orgia, tremeu de súbito a terra e na voragem das águas, que se erguiam, desapareceu a povoação.
As altas barrancas que ainda hoje ali se vêem, atestam a profundidade do abismo em que foi arrojada a povoação e os réprobos...
Depois, muitos anos depois, foi que começou a surgir a atual povoação, que ainda não pôde atingir ao grau de esplendor da que fora submergida.
Foram de novo habitá-la os muras; mas em breve, por entre a escuridão da noite começaram a ouvir, transidos de medo, como o cantar sonoro de galos, que incessante se erguia do fundo das águas.
Consultados os pajés, que perscrutavam os segredos do destino, declaram estes que aquele cantar de galos, ouvindo em horas mortas da noite, provinha daqueles mesmos angaturamas, que deploraram outrora a misérrima sorte da povoação submergida e que, sempre protetores dos filhos dos Muras, serviam-se do canto desesperador dos galos da sapucaia-roca submergida, para recordarem o tremendo castigo por que passaram seus maiores e desviarem a nova geração do perigo de sorte igual.
É este o fato que deu origem ao nome da povoação: Sapucaia-Roca.
3 - Lenda da Sapucaia-Roca
O cônego FRANCISCO BERNARDINO DE SOUZA, (n. 1834), recolheu essa lenda quando esteve em missão científica na região onde é ainda contada. Lembranças e Curiosidades do Vale do Amazonas, pp. 261-262, Pará, 1873.
SAPUCAIA-ROCA, e não sapucaia-oroca, vale dizer casa da sapucaia, casa da galinha, o galinheiro.
MURAS: Luciano Pereira da Silva, estudando o "Estado do Amazonas" no Dicionário Histórico, Geográfico e Etnográfico, IIº, pp. 36-38, Rio de Janeiro, 1922, informa: "A nação mura, de péssimas tradições, infestava as margens do Amazonas em grande extensão, atacando não só os viajantes civilizados como as outras nações índias. Os Muras eram verdadeiros piratas. Preguiçosos por natureza, verdadeiros boêmios, entregam-se ao roubo e à pilhagem. Covardes e imundos, são detestados de todos os demais índios. Frei Caetano Brandão, Bispo do Para, quando da sua quarta visita pastoral ao Sertão, comparou-os a uma manada de porcos, tal o seu estado de depravação."
É natural que fosse aplicada a Mura, a lenda universal das cidades submergidas por castigo de obstinação pecaminosa.
Em quase todo todos os estados do Brasil vivem as lendas das cidades desaparecidas nas águas do mar e dos rios. Em Minas Gerais havia uma cidade linda, no tempo da mineração do ouro, orgulho de luxo e vício. Desapareceu numa noite e está no fundo da lagoa Santa, de onde emerge, lentamente, uma vez por ano, visível e perturbadora, como If. Na Lagoa Negra, Conceição do Arroio, no Rio Grande do Sul há canto estridente de galos misteriosos. Olavo Bilac escreveu: "A mais bela lenda da cidade encantada é amazônica. Na foz do rio Gurupi, a 9 milhas da cidade de Vizeu, no Pará, existe um grande rochedo, em que se cava uma profunda gruta. É crença, entre os povos, que ali, sobre o rochedo, houve um cidade, que foi por uma inundação arrastada para o fundo do rio; nas noites claras, de luar, ouve-se distintamente, lá em baixo, um rumor de vozes humanas e de repiques de sinos. No Sul, encontrei esta mesma lenda, ouvida em Santos, de pescadores de São Vicente." Últimas Conferências e Discursos, p. 330, Rio de Janeiro, 1924.
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