segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

A pequena vendedora de fósforos

      Introdução do conto; contém revelações de inrredo (spoilers):



      Poucas histórias para crianças celebram o sofrimento com o tipo de paixão deste conto sobre uma vendedora de fósforos. A criança frágil e desamparada que morre de frio na véspera do anonovo tornou-se uma espécie de ícone cultural, a vítima de um pai brutal (muito mais cruel que os ogros e bichos-papões dos contos de fadas) e de uma sociedade desalmada. Até a natureza lhe volta as costas, não lhe oferecendo abrigo nem sustento. A mágica dos contos de fadas desaparece, e a salvação chega apenas na forma da intervenção divina.


      O narrador da história da vendedora de fósforos nos transporta para o mundo mental da heroína, permitindo-nos sentir sua dor à medida que a temperatura cai e o vento uiva. Também partilhamos suas visões, primeiro de calor, depois de alimento, depois de beleza e, finalmente, de afeição e compaixão humana. Se a imagem final da história nos apresenta um cadáver congelado, a morte da pequena vendedora de fósforos é ainda assim uma “bela morte”, envolta em espiritualidade radiante e significado transcendente. Quer leiamos seus sofrimentos como “torturas disfarçadas em pieguices” (como o fez P.L. Travers, a autora de Mary Poppins) ou consideremos sua infelicidade como a precondição para a passagem a uma esfera mais elevada, a história impregna nossa imaginação e continua sendo uma das mais memoráveis narrativas da infância.

domingo, 24 de dezembro de 2017

Um Conto de Natal




Charles Dickens


PRIMEIRA ESTROFE

O espectro de Marley


Para começar, digamos que Marley tinha morrido.


Neste particular, não pode haver absolutamente a menor dúvida; a ata dos seus funerais havia sido assinada pelo vigário, pelo sacristão, pelo homem da empresa funerária e pelas pessoas que haviam conduzido o féretro.


Scrooge também a tinha assinado. Ora, Scrooge era um nome bastante conhecido na Bolsa, e sua assinatura era um documento valioso, onde quer que ele a colocasse. O velho Marley estava tão morto como um prego de porta.


Perdão! Não quero dizer com isto que saiba por experiência pessoal o que possa haver de particularmente morto num prego de porta. Por mim, eu estaria mais inclinado a considerar um prego de ataúde como a coisa mais morta que possa haver no comércio. Mas, como devemos esta comparação à sabedoria dos nossos antepassados, tenhamos todo o cuidado em não profaná-la, ou, do contrário, o país estará perdido. Assim pois, vocês hão de permitir-me repetir, com insistência, que Marley estava tão morto como um prego de porta.

sábado, 11 de novembro de 2017

A Mãe

--Oh! Nosso Senhor não mo há-de levar! não é verdade?--
E o velho, que era a Morte, meneou a cabeça duma maneira estranha, em ar de dúvida. A mãe deixou pender a fronte para o chão, e as lágrimas corriam-lhe em fio pela cara. Sentiu-se estonteada com um grande peso de cabeça; estava sem dormir havia três dias e três noites. Passou ligeiramente pelo sono, durante um minuto, e despertou sobressaltada a tremer de frio.
--Que é isto! exclamou, lançando à volta de si o olhar alucinado. O berço estava vazio. O velho tinha-se ido embora, roubando-lhe a criança.
* * * * *
A pobre mãe saiu precipitadamente, gritando pelo filho. Encontrou uma mulher sentada no meio da neve, vestida de luto. «A Morte entrou-te em casa, disse-lhe ela. Via sair a correr levando teu filho. Anda mais depressa que o vento, e o que ela furta nunca o torna a entregar.»
--Por onde foi ela? gritou a mãe. Diz-mo pelo amor de Deus!»
--Sei o caminho por onde ela foi, respondeu a mulher vestida de preto. Mas só to ensino, se me cantares primeiro todas as canções que cantavas ao teu filho. São lindas, e tens uma voz harmoniosa. Eu sou a Noite e muitas vezes tas ouvi cantar, debulhada em lágrimas.
--Cantar-tas-ei todas, todas, mas logo, disse a mãe. Agora não me demores, porque quero encontrar o meu filho.--
A Noite ficou silenciosa. A mãe então, desfeita em lágrimas, começou a cantar. Cantou muitas canções, mas as lágrimas foram mais do que as palavras.
No fim disse-lhe a Noite: «Toma à direita, pela floresta escura de pinheiros. Foi por aí que a Morte fugiu com o teu filho.»
A mãe correu para a floresta; mas no meio dividia-se o caminho, e não sabia que direcção havia de seguir. Diante dela havia um matagal, cheio de silvas, sem folhas nem flores, de cujos ramos pendia a neve cristalizada.
* * * * *
--Não viste a Morte que levava o meu filho?» perguntou-lhe a mãe.
--Vi, respondeu o matagal, mas não te ensino o caminho, senão com a condição de me aqueceres no teu seio, porque estou gelado.»
E a mãe estreitou o matagal contra o coração; os espinhos dilaceraram-lhe o peito, donde corria sangue. Mas o matagal vestiu-se de folhas frescas e verdejantes, e cobriu-se de flores numa noite de Inverno frigidíssima, tal é o calor febricitante do seio d'uma mãe angustiosa.
E o matagal ensinou-lhe o caminho que devia seguir. Foi andando, andando, até que chegou à margem dum grande lago, onde não havia nem barcos, nem navios. Não estava suficientemente gelado para se andar por ele, e era demasiadamente profundo para o passar a vau. Contudo, querendo encontrar o seu filho, era necessário atravessá-lo. No delírio do seu amor, atirou-se de bruços a ver se poderia beber toda a água do lago. Era impossível, mas lembrava-se que Deus, por compaixão, faria talvez um milagre.
--Não! não és capaz de me esgotar, disse o lago. Sossega, e entendamo-nos amigavelmente. Gosto de ver pérolas no fundo das minhas águas, e os teus olhos são dum brilho mais suave do que as pérolas mais ricas que eu tenho possuído. Se queres, arranca-os das órbitas à força de chorar, e levar-te-ei à estufa grandiosa, que está do outro lado: essa estufa é a habitação da Morte; e as flores e as árvores que estão lá dentro, é ela quem as cultiva; cada flor e cada árvore é a vida duma criatura humana.»
--Oh! o que não darei eu, para reaver o meu filho!» disse a mãe. E apesar de ter já chorado tantas lágrimas, chorou com mais

sábado, 4 de novembro de 2017

Barba Ruiva





Barba Ruiva

  Aqui está a lagoa de Paranaguá, limpa como um espelho e bonita como noiva enfeitada.
  Espraia-se em quinze quilômetros por cinco de largura, mas não era, tempo antigo, assim grande, poderosa como um braço de mar. Cresceu por encanto, cobrindo mato e caminho, por causa do pecado dos homens.
  Nas salinas, ponta leste do povoado de Paranaguá, vivia uma viúva com três filhas. O rio Fundo caía numa lagoa pequena no meio da várzea.
  Um dia, não se sabe como, a mais moça das filhas da viúva adoeceu e ninguém atinava com a moléstia. Ficou triste e pensativa.
  Estava esperando menino e o namorado morrera sem ter ocasião de levar a moça ao altar.
  Chegando o tempo, descansou a moça nos matos e, querendo esconder a vergonha, deitou o filhinho num tacho de cobre e sacudiu-o dentro da lagoa.
  O tacho desceu e subiu logo, trazido por uma Mãe-d’Água, tremendo de raiva na sua beleza feiticeira. Amaldiçoou a moça que chorava, e mergulhou.
  As águas foram crescendo, subindo e correndo, numa enchente sem fim, dia e noite, alagando, encharcando, atolando, aumentando sem cessar, cumprindo uma ordem misteriosa. Tomou toda a várzea, passando por cima das carnaubeiras e buritis, dando onda como maré de enchente na lua.
  Ficou a lagoa encantada, cheia de luzes e de vozes. Ninguém podia morar na beira porque, a noite inteira, subia do fundo d’água um choro de criança, como se chamasse a mãe para amamentar.
  Ano vai e ano vem, o choro parou e vez por outra, aparecia um homem moço, airoso, muito claro, menino de manhã, com barbas ruivas ao meio-dia e barbado de branco ao anoitecer.
  Muita gente o viu e tem visto. Foge dos homens e procura as mulheres que vão bater roupa. Agarra-as só para abraçar e beijar. Depois, corre e pula na lagoa, desaparecendo.
  Nenhuma mulher bate roupa e toma banho sozinha, com medo do Barba Ruiva. homem de respeito, doutor formado, tem encontrado o Filho-da-Mãe-d’Água, e perde o uso da razão, horas e horas.
  Mas, o Barba Ruiva não ofende a ninguém. Corre sua sina nas águas da lagoa de Paranaguá, perseguindo mulheres e fugindo de homens.
  Um dia desencantará. Se uma mulher atirar na cabeça dele água benta e um rosário indulgenciado. Barba Ruiva é pagão, e deixa de ser encantado sendo cristão.
  Mas não nasceu ainda essa mulher valente para desencantar o Barba Ruiva.
  Por isso ele cumpre sua sina nas águas claras da lagoa de Paranaguá.
4 – Barba Ruiva.
  LUÍS CÂMARA CASCUDO.

sábado, 28 de outubro de 2017

Lenda da Sapucaia-Roca

  Sapucaia-roca é uma pequena povoação à margem do rio Madeira.
  Pouco abaixo do lugar em que se acha assentada, referem os índios que existiu outrora uma povoação, muito maior do que esta, e que um dia desapareceu da superfície da terra, sepultando-se nas profundidades do rio.
  É que os muras, que então a habitavam, levavam a vida desordenada e má, e nas festas, que em honra de Tupana celebravam, entregaram-se a danças tão lascivas e cantavam cantigas tão impuras, que faziam chorar de dor aos angaturamas, que eram os espíritos protetores, que por eles velavam.
  Por vezes os velhos e inspirados pajés, sabedores dos segredos de Tupana, haviam-nos advertido de que tremendo castigo os ameaçava, se não rompessem com a prática de tão criminosas abominações.
  Mas cegos e surdos, os muras não os viam, nem os ouviam. E pois um dia, em meio das festas e das danças e quando mais quente fervia a orgia, tremeu de súbito a terra e na voragem das águas, que se erguiam, desapareceu a povoação.
  As altas barrancas que ainda hoje ali se vêem, atestam a profundidade do abismo em que foi arrojada a povoação e os réprobos...
  Depois, muitos anos depois, foi que começou a surgir a atual povoação, que ainda não pôde atingir ao grau de esplendor da que fora submergida.
  Foram de novo habitá-la os muras; mas em breve, por entre a escuridão da noite começaram a ouvir, transidos de medo, como o cantar sonoro de galos, que incessante se erguia do fundo das águas.
  Consultados os pajés, que perscrutavam os segredos do destino, declaram estes que aquele cantar de galos, ouvindo em horas mortas da noite, provinha daqueles mesmos angaturamas, que deploraram outrora a misérrima sorte da povoação submergida e que, sempre protetores dos filhos dos Muras, serviam-se do canto desesperador dos galos da sapucaia-roca submergida, para recordarem o tremendo castigo por que passaram seus maiores e desviarem a nova geração do perigo de sorte igual.
  É este o fato que deu origem ao nome da povoação: Sapucaia-Roca.

3 - Lenda da Sapucaia-Roca
  O cônego FRANCISCO BERNARDINO DE SOUZA, (n. 1834), recolheu essa lenda quando esteve em missão científica na região onde é ainda contada. Lembranças e Curiosidades do Vale do Amazonas, pp. 261-262, Pará, 1873.
  SAPUCAIA-ROCA, e não sapucaia-oroca, vale dizer casa da sapucaia, casa da galinha, o galinheiro.
  MURAS: Luciano Pereira da Silva, estudando o "Estado do Amazonas" no Dicionário Histórico, Geográfico e Etnográfico, IIº, pp. 36-38, Rio de Janeiro, 1922, informa: "A nação mura, de péssimas tradições, infestava as margens do Amazonas em grande extensão, atacando não só os viajantes civilizados como as outras nações índias. Os Muras eram verdadeiros piratas. Preguiçosos por natureza, verdadeiros boêmios, entregam-se ao roubo e à pilhagem. Covardes e imundos, são detestados de todos os demais índios. Frei Caetano Brandão, Bispo do Para, quando da sua quarta visita pastoral ao Sertão, comparou-os a uma manada de porcos, tal o seu estado de depravação."
  É natural que fosse aplicada a Mura, a lenda universal das cidades submergidas por castigo de obstinação pecaminosa.
  Em quase todo todos os estados do Brasil vivem as lendas das cidades desaparecidas nas águas do mar e dos rios. Em Minas Gerais havia uma cidade linda, no tempo da mineração do ouro, orgulho de luxo e vício. Desapareceu numa noite e está no fundo da lagoa Santa, de onde emerge, lentamente, uma vez por ano, visível e perturbadora, como If. Na Lagoa Negra, Conceição do Arroio, no Rio Grande do Sul há canto estridente de galos misteriosos. Olavo Bilac escreveu: "A mais bela lenda da cidade encantada é amazônica. Na foz do rio Gurupi, a 9 milhas da cidade de Vizeu, no Pará, existe um grande rochedo, em que se cava uma profunda gruta. É crença, entre os povos, que ali, sobre o rochedo, houve um cidade, que foi por uma inundação arrastada para o fundo do rio; nas noites claras, de luar, ouve-se distintamente, lá em baixo, um rumor de vozes humanas e de repiques de sinos. No Sul, encontrei esta mesma lenda, ouvida em Santos, de pescadores de São Vicente." Últimas Conferências e Discursos, p. 330, Rio de Janeiro, 1924.
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sábado, 14 de outubro de 2017

Lendas Brasileiras

Lendas Brasileiras
Luis Câmara Cascudo
Ilustações de Poty.
Editora: Ediouro.

[003]Sumario:
[005]introdução

[008]nota do editor
[011]biografia de poty
[0]norte
[0]a lenda da iara
[0]cobra norato
[0]lenda da sapucaia-roca
[0]barba ruiva
[0]nordeste
[0]a cidade encantada de jericoacoara
[0]carro caido
[0]senhor do corpo santo
[0]as mangas de jasmim de itamaraca
[0]a morte do zumbi
[0]este
[0]o frade e a freira
[0]a serpente emplumada da lapa
[0]o sonho de paraguassu
[1]sul
[1]o negrinho do pastoreio
[1]a lenda da gralha azul
[1]fonte dos amores
[1]a virgem aparecida
[1]a lenda de itarare
[1]centro
[1]os tatus brancos
[1]a missa dos mortos
[1]chico rei
[1]romaozinho
[1]algumas notas --- vocabulario e informações

sexta-feira, 15 de setembro de 2017

Cobra Norato


  No paranã do cachoeiri, entre o Amazonas e o Trombetas, nasceram Honorato e sua irmã Maria Caninana.

  A mãe sentiu-se grávida quando se banhava no rio Claro. Os filhos eram gêmeos e vieram ao mundo na forma de duas serpentes escuras.

  A tapuia batizou-os com os nomes cristãos de Honorato e Maria. E sacudiu-os nas águas do paranã porque não podiam viver em terra.

A Lenda da Iara

Deitada sobre a branca areia do igarapé com os matupiris, que lhe passam sobre o corpo meio oculto pela corrente que se dirige para o igapó, uma linda tapuia canta a sombra dos jauaris, sacudindo os longos e lindos cabelos, tão negros como seus grandes olhos.
As flores lilases do mururé formam uma grinalda sobre sua fronde que faz sobressair o sorriso provocador que ondula os lábios finos e rosados.
Canta, cantando o exílio, que os ecos repetem pela floresta, e que, quando chega a noite, ressoam nas águas do gigante dos rios.



Quem isto ouvir e contar em pedra se há de tornar...