domingo, 3 de fevereiro de 2019

Contos de Fadas

Introdução do livro "Contos de Fadas".



APRESENTAÇÃO

Um eterno encantamento

ANA MARIA MACHADO

Como a maioria dos leitores, tive meu primeiro contato com contos de fadas ainda antes de saber ler. Uma alegria imorredoura de minha meninice nasceu do fato de que contar histórias para as crianças era um ritual que fazia parte do quotidiano de minha família. Lembro perfeitamente de ter ouvido desde a primeira infância varias narrativas tradicionais, dessas que compõem a tradição oral brasileira. Muitas delas, talvez sua maioria, eram de origem europeia e fazem parte desse inesgotável baú de tesouros que agrupamos sob o título genérico de “contos de fadas”. Em minha memória, estão para sempre associadas ao jeito e ao carinho de quem costumava contá-las. Chapeuzinho Vermelho, O isqueiro mágico (com seus tremendos cachorros de olhos do tamanho de rodas de moinho), Barba Azul e A Bela e a Fera faziam parte do repertório de minha mãe. João Mata-Sete, O Gato de Botas, O Pequeno Polegar ou João e o pé de feijão me vinham geralmente pela voz paterna. O esqueleto que despencava aos poucos pela chaminé diante do homem que partiu em busca do medo era evocado por minha avó. E minha tia se encarregava das inúmeras narrativas de três irmãos que saíam pelo mundo em busca de aventuras.

Em seguida, os primeiros livros infantis que conheci também faziam parte desse universo. Havia uma coleção deles que me parecia um tesouro, com pequenas e encantadoras ilustrações coloridas ou a bico de pena, de Franta Richter, pintor tcheco radicado em São Paulo. Eram bem pequeninos, num tamanho bom para serem folheados por mãos miúdas. Muito mais tarde fui descobrir que eram parte da Biblioteca Infantil, organizada em 1915 pelo professor Arnaldo de Oliveira Barreto para a editora que depois se chamaria Melhoramentos mas na ocasião ainda era Weiszflog Irmãos. Eu tinha paixão por essas histórias. Nunca vou esquecer da imagem da clareira na floresta em que os anõezinhos montavam guarda ao caixão de vidro de Branca de Neve. Ou da belíssima garça branca que dominava o primeiro plano da paisagem com que se abria O Patinho Feio. Aos poucos fui também dominando as dezenas de relatos com pequenas figuras sombrias em preto e branco que compunham os volumes da editora Quaresma(Contos da Carochinha, Histórias do arco da velha e outras). Outra série, Horas felizes, me trouxe as marcas indeléveis dos Três Porquinhos, com suas diferentes casas sopradas pelo Lobo, e seu batedor de manteiga rolando morro abaixo com a fera dentro, enquanto os irmãos se divertiam por tê-lo enganado. E seguramente os volumes da Vecchi que reuniam Os mais belos contos de fadas (irlandeses, russos, franceses, ingleses, italianos, árabes, chineses etc.) me garantiram meses de leitura deliciada.

A rigor, porém, esses contos tradicionais e populares que normalmente chamamos em português de contos de fadas constituem um tipo de narrativa com características muito específicas. A presença de fadas entre seus personagens não é uma delas. Como se pode ver nesta coletânea, em alguns casos aparecem fadas. Em outros, não.


No entanto, há certas qualidades que cercam os contos de fadas e, com muita clareza, os distinguem de outros gêneros literários. Algumas se impõem à primeira vista e não têm a ver com traços identificáveis no texto em si. Por exemplo, sua universalidade e sua vizinhança com a infância. Desta última, decorre outra, ainda mais sutil: sua carga afetiva. Falar em conto de fadas é evocar histórias para crianças, lembranças domésticas, ambiente familiar. Equivale também a uma filiação ao maravilhoso, em que tudo é possível acontecer.

Esse universo tem a ver também com outro aspecto: o da cultura oral. Trata-se de contos populares, de uma tradição anônima e coletiva, transmitidos oralmente de geração a geração e transportados de país em país. Muitos deles foram depois recolhidos em antologias por estudiosos, com maior ou menor fidelidade à versão original de seus contadores e contadoras. Em vários casos, foram recontados e reelaborados – ora ganhando qualidade literária nas novas roupagens, ora se perdendo em adaptações cheias de intenções de corrigir as matrizes populares. Ora mantendo seu vigor original, ora se diluindo em pasteurizações.

Essas diferentes versões se multiplicam. Continuam a ser feitas hoje em dia. Por isso, o próprio conceito de “versão original” é difícil de precisar. Muitas vezes é difícil que o leitor atual tenha a possibilidade de acesso aos textos em sua forma cristalizada de quando foram pela primeira vez fixados por escrito, ou na versão que se tornou seu ponto de partida clássico.

Esta antologia traz alguns desses contos mais conhecidos, reproduzidos aqui em novas traduções, a partir dos originais normalmente considerados como suas fontes literárias. Alguns são realmente originais – como alguns de Andersen, que por vezes inventava histórias antes inexistentes, seguindo o modelo tradicional. Outros foram recolhidos do folclore e recontados de uma forma tão adequada e que teve tanto êxito que se converteram em matrizes, espalhando-se pelo mundo e passando a funcionar como um original, engendrando a partir daí inúmeras variantes. Por isso, este livro representa uma rara oportunidade de contato com esse universo multifacetado.

No início da década de 1970, quando eu começava a escrever para crianças ou sobre produções culturais destinadas ao público infantil, deparei-me com uma situação que me surpreendeu, por ser tão diversa de minha vivência pessoal: havia uma grande desconfiança em relação aos contos de fadas. Era moda falar mal deles. A quase totalidade das edições que havia no mercado constava de versões resumidíssimas e adulteradas, totalmente pasteurizadas (e, portanto, sem sentido), de tão expurgadas de seus elementos essenciais. O gênero era acusado dos mais diversos males: elitismo, sexismo, violência, moralismo, maniqueísmo. Comecei quase sozinha uma verdadeira cruzada pela reabilitação do gênero entre nós. Em palestras, entrevistas ou numa coluna semanal que então mantinha no Jornal do Brasil, tratei de acentuar a importância de não nos perdermos dessa tradição por simples importação de modismos de correção política.

Nesse processo, procurei recorrer a opiniões de especialistas de outras áreas que pudessem me ajudar. Eram numerosos, variados e intelectualmente consistentes. Na área da filosofia e da antropologia, por exemplo, esses estudiosos ressaltavam os parentescos entre os contos e as sagas, mitos e ritos das sociedades primitivas, analisando seus enredos iniciatórios. Os linguistas e folcloristas, por sua vez, seguindo o russo Vladimir Propp, debruçaram-se sobre a forma de estruturar esses relatos, examinando um repertório básico comum a todos os contos populares. E a psicanálise deu uma enorme contribuição a esse debate. De início, por meio de Jung e seus seguidores, trazendo o conceito do arquétipo como estrutura do inconsciente coletivo.

Todas essas contribuições ajudavam a considerar os chamados contos de fadas com um olhar de respeito. Não só faziam parte dos primórdios da humanidade, mas neles e em gêneros correlatos germinava o embrião de toda a arte literária que a humanidade veio a desenvolver.

Em seguida, em plena efervescência do momento que eu estava vivendo, foi publicado o livro que seria crucial na transformação da maneira pela qual vinham sendo considerados esses contos maravilhosos: A psicanálise dos contos de fadas, de Bruno Bettelheim, saído no exterior em 1976 e traduzido no Brasil no final da década. A partir daí, esses contos deixaram de ser o patinho feio da literatura e se transformaram em magnífico cisne, em condições de nadar ao lado de seus irmãos no lago artístico.

Há ainda outro aspecto que gostaria de destacar ao anteceder com estas poucas linhas uma coletânea tão significativa quanto esta, ilustrada por artistas de tão alta linhagem – por si sós capazes de despertar um rico repertório de análises. É o fato de que eles fazem parte de um patrimônio comum de todos nós, um tesouro que a humanidade vem preservando pelos tempos afora. Cada um de nós tem direito a um quinhão dele. Ao contrário de um acervo material, neste caso quanto mais ele se divide, mais cresce. Dele se constituem referências culturais comuns a todos nós. O historiador José Murilo de Carvalho, em Histórias que Cecilia contava, confirmou o que as Histórias de Tia Nastácia (de Monteiro Lobato) ou as Histórias da Velha Totonha (de José Lins do Rego) já apontavam: o repertório de contos maravilhosos narrados por escravos e seus descendentes em fazendas no século XIX e início do XX era europeu, filtrado pela linguagem e habilidade narrativa africanas – um importante capítulo de nossa formação cultural.

Conhecer essas matrizes é importante para nos conhecermos. E, como este livro comprova, é uma forma de encantamento literário.

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Quem isto ouvir e contar em pedra se há de tornar...